Eu Quero Gnose Sem Trabalhar
Sobre ciborgues, originalidade e performance
sex, 2025-ago-22
"I give no sources, because it is indifferent to me whether what I have thought has already been thought before me by another."
— a frase que te cumprimenta à entrada do meu blog é atribuída a Ludwig Wittgenstein, que por sua vez a usa para abrir seu mais famoso livro. Como a ele, a mim não me importa se outros antes de mim já usaram frases semelhantes, ou pensaram coisas semelhantes, ou fizeram coisas semelhantes a mim. Houve e há bilhões de vidas humanas; o prestígio da experiência inédita exclusiva não é uma das minhas preocupações.
A reproduzo aqui porque penso que há algo nela que valoriza a capacidade humana de criar o novo a partir da iteração do existente, dentro e fora de si.
Há "na academia" — Astaghfirullah — uma prática um tanto patológica de referenciar suas afirmações, documentando-as padronisticamente, religiosamente, para um potencial futuro leitor atento. Mas a crítica da citação acadêmica não vem ao caso. Pretendo elaborá-la numa ocasião futura.
Jorge Luís Borges volta e meia inventava referências literárias para a sua ficção. No que tange ao universo da escrita pretensa aos fatos — esses, que têm, fatalmente, sempre um pingo de ficção —, o esforço de corroborar cada afirmação com uma fonte, e de organizá-las de acordo com um padrão pré-estabelecido por alguém que não o escritor, por vezes mais atrapalha do que ajuda. Trata-se da tentativa de aprisionar "na letra morta da ABNT" o incontível
Você está no meu blog. É implícito que de tudo aqui eu clamo autoria, da forma ao conteúdo. As línguas, pressuponho; já estavam aqui antes de eu nascer e continuarão aqui, mudadas, depois que morrer. Os sujeitos também. As imagens e memes que uso e referencio, o leitor contemporâneo subentende que pertencem não só a mim, mas ao mundo.
Produto do meu tempo (como qualquer um de qualquer tempo), sei que devo quase tudo que li, vi, e descobri à amálgama amorfa que é a internet. O computador é um dos meus progenitores. Não é que seja impensável pra mim a idéia ds acessar o mundo sem ele; é que não se faz necessário, agora, especular muito sobre a possibilidade. Trata-se de uma curiosidade longínqua. É como ignorar a existência da câmera e do cinema: estas tecnologias existem agora como fato-dado, e mediam pela raíz a nossa relação com "O Real" desde meados do último século, tornando-se portanto indistingüíveis do mítico "Real". Qualquer um hoje tem o próprio sentido da visão influenciado, e até dominado, pelas possibilidades do vídeo, por exemplo.
Há muito que o homem já tem antenas de rádio ao invés de ouvidos; depois, câmeras ao invés de olhos; agora, na iteração mais recente desse processo, temos algoritmos suplantando a função do pensamento. Muito se fala da possibilidade da implantação cirúrgica destes ou outros aparatos no corpo biológico; o tal "ciborgue". Mas isto seria, para mim, mera formalidade. Neuralink™ já nasceu obsoleto. Não tenho implantes biônicos, e mesmo assim sou meio-máquina, no sentido em que você, leitor, que usa a internet e dirige um carro e opera um microondas e corta coisas com a faca, e se vale de mapas mentais destes sistemas, e já adaptou sua memória muscular para seu uso, também o é.
Entendo que o username, o endereço de IP, o domínio www e a imagem produzida pela câmera frontal do telefone, exibida em uma ou milhões de telas, compartilham e compõem a mesmíssima realidade que o rosto, a fala, a palavra cara-a-cara e os documentos oficiais, assinados e registrados em cartório com CPF e firma reconhecida. É claro que entre o oficial e o oficioso há sempre um oceano, mas todas estas categorias pale in comparison com a totalidade do real, que abrange tudo isso, e mais um pouco para além do observável. As leis, as normas e os registros são, do ponto de vista do Todo, elementos idênticos às regras não ditas, ou ao disse-me-disse, ou àquilo que se fala em público, em frente às câmeras, ou em privado, baixinho, só pra quem é de pressuposta confiança; o Todo é tudo que se vê no aleph.
Nesse fluxo de consciência, concluo que é indiferente a existência ou não de um só olho-que-tudo-vê (chame-o de Deus) se todos os olhos são olhos-que-quase-tudo-vêem, sendo sua soma total a expressão mais concreta do Todo.
e tem tudo isso, e ainda mais um pouco.
No momento, me contento em estipular duas premissas: 1) ninguém conhece o Todo
Essa lógica me parece auto-evidente, auto-contida e sólida. Não leio muita filosofia, mas sou curioso e absorvo uma coisa ou outra. Portanto, se alguém já disse algo parecido e eu não sei, ou se já soube e me esqueci, relevo, pois não me é acessível. São conclusões minhas, na medida em que algo sequer pode ser de alguém.
Talvez você pense que eu escrevo obviedades — isto se dá só porque o seu todo já abrangia uma coisa ou outra do que escrevi. Este fato é trivial. Entre habitantes do panóptico, parece que todos temos essa mania de demiurgo, de querer aparentar já conhecer tudo aquilo que se apresenta; de ser unbothered, blasé, nonchalant: "tudo que você acaba de descobrir eu já sabia há anos". Isso não é novo, mas toma nova forma a partir do tempo em que as câmeras, quase onipresentes, nos tornam conscientes da nossa aparência externa. O mundo atual não admite segredos. Por isso, é preciso fingir estar a par de tudo. É preciso simultaneamente projetar onisciência e performar efforlessness.
Todo mundo quer gnose, mas é cringe ser visto correndo atrás dela. Ninguém quer ser um "wannabe", e disso não se escapa. Até os que escaparam estão, digamos, "dentro do jogo". Cada um usa as armas que tem para manter as aparências, e eu, que não estou à parte de nada, me previno dizendo às vezes que não atingi gnose nenhuma, "e nem faço questão...".
Como a raposa com as uvas, eu só quero gnose se for sem trabalhar.