Carta para L.

qui, 2025-jul-11

arrancado o band-aid; chorei e lamentei muito, mas não me descontrolei porque sei intuitivamente que posso confiar em você e aprecio bastante a iniciativa da mensagem clara, uma graça que outros não me deram. assim, dói muito menos.

pensar sobre L. me faz apreciar, também, que ela tentou por meses manter essa amizade. deve ter sido uma barra pra ela, em meio ao estresse e ao desgaste.
mesmo assim, existe alguma similitude, ou melhor ainda, alguma cumplicidade entre nós. L. me ouviu quando me ouvir era algo proibido, quase perigoso.

lamento que, como A. e tantos outros, L. tenha também saído da minha vida.
ao tentar me manter por perto, ela foi mais corajosa que os demais — em especial os homens, muitos dos quais agiram um tanto covardemente, a meu ver. mesmo assim, assumir abertamente uma amizade nessas condições requer uma coragem que eu não posso cobrar dos outros, porque eu mesmo não a tenho.
de todos, L. foi a única que não fugiu, não virou a cara, não fingiu que eu não existia. me deu um exemplo de amizade e de hombridade logo antes de encerrarmos a nossa. [notasobre "hombridade", o dicionário oxford diz: "1. retidão de caráter; dignidade; honradez. / 2. ar viril, másculo"; e, no entanto, não vi ninguém ser mais covarde nos últimos meses do que os homens ao meu redor. essa qualidade é muito melhor atribuída a pessoas como A. e L., e por isso não acredito tanto na essência do gênero quanto na essência de caráter.]

algo ainda dói ao saber como foi fácil pra mim morrer pra essas pessoas. treze dias de desaviso e algumas poucas palavras na minha ausência bastaram para me imputar um ar de intocável que eu jamais sentira. ao mesmo tempo, acho valioso saber que há pessoas que nunca tiveram por mim lá muita estima (pois, se tivessem, teriam me confrontado).
muitas, exceto L., que me confrontou; nessas situações, confronto é um sinal de respeito, e o mínimo que se espera de um amigo.

gosto de imaginar que, pelo menos para L. (e A., em algum nível) não foi assim tão fácil se desvencilhar do meu fantasma.
mas por quê eu desejo dificuldade pros outros? pra duas pessoas que amo? talvez porque, nos últimos meses, tbm enfrentei eu mesmo algumas dificuldades.
seja como for, não é um sentimento muito nobre.

me superponho entre pensar em perdoar a todos e pensar que virar a outra face é um atestado de fraqueza. com efeito, não acho que seja nenhum dos dois, uma vez que tanto o perdão quanto o conflito requerem reconhecimento, e ocorre que, para muitos deles, eu hoje sequer existo.
é muito estranho ter a sensação de sumir do mapa ainda em vida. é uma sensação que L. se esforçou pra mitigar em mim, e fez o quanto pôde. por isso, agradeço.

distante, L. hoje é pra mim um personagem; alguém um tanto abstrato, mistificada pelos meses e pelas 5 quadras que nos separam. no dia em que nos afastamos, me veio à memória o dia em que nos conhecemos:::

quando a notei de longe no colégio pela primeira vez, e ainda achava que seu nome era bia, fiz um comentário sobre “como toda bia é feliz”. ela parecia a pessoa mais radiante do mundo — “radiante” é mesmo a palavra. eu não fazia idéia que, a essa altura, a depressão já lhe roía os ossos.

assim foi durante toda a nossa amizade. ela parecia atormentada, presa dentro da própria cabeça, e às vezes pensei que só eu via uma menina lá dentro tentando sair. não era pra mim uma qualquer: era a pessoa mais brilhante do grupo. L. parecia ter o poder hipnótico de mudar radicalmente o assunto da roda ao tirar da cartola um pensamento seu. talvez ela não ache isso, mas eu acho. [...mas sem mais idolatria; vou direto ao ponto].

há coisas nela que sempre me saltaram. as sobrancelhas expressivas, os olhos maiores que a cara, notando mil coisas que só ela sabia, e só eu entendia

e ela me entendia. me entendia tão bem que eu nem precisava dizer nada, porque a arquitetura dos seus pensamentos era tão complementar à dos meus que era quase como se estivéssemos assistindo o mesmo filme. um dia, aqui em casa, demos as mãos olhando as estrelas. acampamos juntos por uma semana no meu sofá, e certa vez acordamos tarde e emendamos o café da manhã com o almoço, numa manobra que chamamos de “cafoço”. então, inventamos que toda vez que comêssemos, estávamos na verdade continuando a refeição anterior, de modo que engatamos num eterno cafoço que, reza a lenda, continua até hoje. ela namorava na época, mas seu namorado nunca teve ciúmes da nossa relação, e nem teve motivos para tal, porque entre nós nunca houve malícia, nem terceiras ou quartas intenções, só um carinho inocente e descompromissado, daqueles que a gente já nasce sabendo viver.

[...entre várias formas de interação, a bobeirinha é uma das que mais valorizo. ‘bobeira é coisa de criança’, e os círculos sociais dificilmente admitem infantilidades. como homem, só faço bobeiras perto das pessoas que amo. — o que é um cafoço? é uma bobeira dessas que a gente inventa só porque se sente desinibido quando está entre amigos. se deixar ser bobo é baixar a guarda, e isso requer um nível de conforto e vulnerabilidade do qual nem sempre se é capaz. é também por isso que tenho razões pra acreditar na relação de confiança que L. e eu estabelecemos ao longo de 8 anos].

L. esteve ao meu lado por dois namoros. com a ajuda dela, entrava e saía de tudo. confiei a ela coisas que nem lembrava, segredos que não confiaria nem a mim mesmo.
L., a rainha dos espaços infinitos.
L. — mas tudo que é infinito tem essa mania de acabar, parece. o que é finito é o tempo humano, regido pela razão sempre limitada.

houve em algum momento uma quebra tectônica de confiança, mas que, contra todos os sinais, acredito ser superficial [...— "superficial" como a queimadura de segundo grau, que só parece boa em comparação a à de 3º. mesmo assim, recupera-se].
em essência, eu confio nela. fico tranqüilo porque sei que L. e eu temostivemos uma conexão rara, e que esta, por ser amizade e não romance, não está sujeita às convenções e protocolos bestas que governam o romance, e que a gente internaliza e reproduz, às vezes só pra machucar o outro, às vezes só por não saber lidar com o amor [...amor — antes de qualquer namorado, L. ouviu meu primeiro “eu te amo”.]. sei que não quero machucá-la, e confio que ela também não.

agora, não tem mais ninguém ao meu lado que me conheça tão profundamente quanto L. me conheceu [...nota: preciso parar de fazer terapia, que tá custando uma fortuna].
não sei por que escrevo algo assim tão pessoal para alguém que, pra todos os efeitos, não está mais presente. acho que é porque, das coisas importantes que se acabam, eu prefiro acabá-las bem.
esses dias falei com A. pelo telefone. concluí que foi melhor falar do que não falar. por essa razão, te escrevo.

espero que sua vida seja rica e que a gente se reencontre quando a hora for propícia, sem ressentimentos. e por ora, meio que é isso.
obrigado, L. — com amor, T.


(extraído e adaptado do meu diário)